Há trails com obstáculos em cada curva e em que o tempo passa com um misto de sensações: vitoriosos, por termos ultrapassado mais um, determinados a não voltar atrás e ter de o enfrentar outra vez e, ansiosos por descobrir se o próximo não será mais difícil ou mesmo intransponível!
Mais adrenalina do que isto, é difícil. Maior “limpeza cerebral”, é impossível!
O Trail da Rota da Levada é um destes trails. Manteve-nos neste estado de espírito do princípio ao fim. Alguns de vocês até o podem já ter feito e nem o acharam nada de extraordinário. E a resposta é: depende da altura do ano e das condições meteorológicas das semanas e dias anteriores. Percorrer o caminho adjacente à levada, com a água a correr entre muros é uma coisa; fazer o mesmo percurso com o piso encharcado e uma corrente veloz a transbordar devido à quantidade e velocidade da água, é algo bem diferente. Assim, recomendamos que façam o trilho na primavera (ou verão) e não como nós, que o fizemos numa altura desaconselhável (Dezembro, depois de muita chuva).
Mas vamos à parte prática: resolvidos a fazer dois trails numa manhã, este e o PR2 Rota das Aldeias do Xisto, começamos pela aldeia da Cerdeira, pretendendo descer até ao Castelo da Lousã e aí iniciar o PR2, em rota circular. No entanto, o primeiro, que seria simples “sempre a descer”, acabou por se revelar física e emocionalmente esgotante e tão espetacular que qualquer outro feito a seguir saberia sempre a pouco. O PR2 ficou para outra visita à Lousã.
Marcado no dia anterior, apanhamos um táxi, ainda de noite (7h da manhã), no Castelo da Lousã que nos levou serra acima até à Cerdeira. A viagem foi deslumbrante à medida que amanhecia e subíamos por entre as nuvens, até ficarmos acima destas.
Apeámo-nos numa zona em plataforma no topo da aldeia que ainda dormia. Mesmo a esta hora, o tom do xisto sobrepunha-se ao verde da encosta e ao branco das nuvens. Foi-nos difícil encontrar o início do percurso, apesar de ser oficial e sinalizado (enfim…). Mas lá o encontramos e, a partir daí, começou a aventura.
Aldeia da Cerdeira ao amanhecer. O início do trilho estava ali, algures.
A aldeia consiste numa rua estreita de acentuado declive, que estabelece a ligação entre a parte alta e a ribeira que serpenteia no fundo do vale. As construções irregulares e currais de animais (também estes de xisto), são percorridos por caminhos esculpidos nos afloramentos rochosos.
Aldeia da Cerdeira: as habitações foram construídas sobre uma encosta rochosa, encontrando-se rodeadas por uma escadaria de socalcos, que as defendem contra a erosão da chuva e do vento.
As ribeiras levavam muita água e, logo na primeira, uma escorregadela ditou que concluíssemos todo o percurso encharcados. Telemóvel salvo, ossos no lugar, nada de especial, prosseguimos.
Pormenor do percurso
Continuamos a cruzar a serra por floresta, ribeiros, cascatas e vistas de cortar a respiração. Vários desafios superados: mais travessias por pequenos regatos e pedras escorregadias, contorno de árvores caídas a bloquear o caminho e lá fomos. Pelo caminho agreste íamos antecipando o momento em que chegaríamos à levada: velhos canais de irrigação (ou aquedutos) ladeados por um percurso pedestre, as mais antigas do nosso país foram construídas no século XIII, e constituem verdadeiros prodígios de engenharia.
Pormenor do percurso, destacando-se a paisagem predominantemente xistosa, onde subsistem vestígios da floresta sempre-verde dos climas temperados
Sucedem-se pequenos ribeiros e regatos, alguns com pequenas pontes ou passagens improvisadas e outros em que é necessário transpor a pé, evitando pedras escorregadias.
Até que finalmente chegámos à levada. A visão do cenário fez-nos soltar a primeira exclamação: é impossível passar, vamos ter que voltar para trás!
Levada a transbordar
A quantidade e velocidade da água da levada, faziam-na sair do leito e transbordar numa cascata, que se precipitava no abismo verde até atingir, muitos metros abaixo, a ribeira que corria na base do talude. O caminho pedonal da levada era o muro da própria, estreito por natureza. Guarda-corpos havia em 10% do caminho, o restante era feito sem qualquer proteção.
Analisado o panorama com calma, decidimos que conseguiríamos passar desde que tivéssemos o maior cuidado (o facto de o tempo estar chuvoso mas sem vento foi determinante, o risco de queda de uma árvore sobre a levada ficava mais reduzido).
O caminho de serviço da levada é o próprio paramento da mesma, o qual se apresentava humedecido e logo escorregadio, nos troços em que a água não estava a transbordar
Alguns raros trechos da levada encontravam-se protegidos com prumos metálicos e cordas
O cenário era de sonho, uma leve bruma, o som brutal da água, o verde intenso, em suma, uma simbiose entre a natureza e a obra humana no melhor dos resultados.
Prosseguimos assim cerca de 2km sempre à espera de um qualquer obstáculo ou imprevisto que tornasse demasiado arriscado continuar, mas felizmente tal não aconteceu.
Vista do final da levada com o Castelo da Lousã ao longe
No final, foi percetível que o perigo tinha passado e assim aceleramos a corrida, ansiosos por chegar ao Castelo onde tínhamos deixado o carro que, em 5 minutos, nos levaria de volta ao Hotel, ainda a tempo de um merecido pequeno-almoço.
Os hóspedes que enchiam a sala do “Terra” (muito bonita) olharam para estas duas almas surpreendidos, com o nosso outfit e ar acelerado! Só voltamos a pensar no banho forçado da fase inicial do nosso percurso, quando o guardanapo de pano, colocado no colo, ficou rapidamente ensopado!
E é isto o maravilhoso do trail de aventura: vive-se para além da dor e do sacrifício físico, invadidos pela adrenalina e por uma satisfação imensa.
A saber...
TRAIL
Designação: | “Rota da Levada” |
Sinalização: | o percurso está razoavelmente bem marcado, PR3 LSA – folheto oficial |
Percurso: | Da Aldeia do Xisto da Cerdeira ao Castelo da Lousã |
Distância: | 8km |
Desnível acumulado: | -943 m (feito no sentido descendente, da aldeia ao castelo) |
Altitude máxima: | 700m |
Época do ano (ideal): | Primavera |
Running/ Power hiking: | Aprox. 60/40 |
Orientação: | Vários registos do percurso na Wikiloc. |
Acessibilidade: | Possível chegar de carro “normal” a qualquer uma das extremidades do trilho (não é preciso um 4×4). Não detetamos transporte público. |
TRAVEL
Localidade: | Lousã |
Alojamento: | Palácio da Lousã Boutique Hotel |
Facilidades para hikers/trail runners: | O horário do pequeno-almoço (até 11h) permite fazer o trail e ainda chegar a tempo. É um Hotel Bike friendly (pode pendurar a bicicleta no quarto!) e muito bonito. |
Distância ao ponto de início do trail: | 5 minutos |
Restaurante: | Villa Lausana (a 1 min a pé do Hotel) |
Combinação perfeita para um fim-de-semana memorável!
Próxima partilha: Vamos até aos Picos da Europa mostrar um trilho fabuloso. Até Janeiro!
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